A pejotização é lícita somente quando existe efetiva autonomia profissional e inexistem os elementos da relação de emprego; torna-se ilícita quando uma pessoa é obrigada a abrir CNPJ para prestar serviços com subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade, disfarçando um vínculo empregatício. Nessa hipótese, a Justiça do Trabalho tende a reconhecer o vínculo, com pagamento de férias, 13º, FGTS, horas extras, verbas rescisórias e demais direitos. A seguir, explico passo a passo o conceito, a base legal, os sinais práticos de fraude, as diferenças em relação à terceirização e ao trabalho autônomo legítimo, os riscos para empresas e trabalhadores, e o que fazer em cada cenário.
Pejotização é a prática de contratar uma pessoa física por intermédio de uma pessoa jurídica (normalmente uma empresa individual, MEI ou sociedade unipessoal) para executar atividades que, na realidade, são desempenhadas como se houvesse emprego. Não se trata de uma figura criada por lei, mas de um nome dado a uma situação fática: uso do “CNPJ” para mascarar relação de emprego. A distinção central é simples: se a prestação ocorre com autonomia real, responsabilidade própria pelo risco do negócio e ausência de subordinação, estamos perante prestação de serviços civil/empresarial; se há subordinação e os demais requisitos do vínculo, há emprego, ainda que a remuneração saia “contra nota”.
A contratação é, em regra, válida quando o prestador:
organiza sua própria atividade (autogestão),
assume os riscos do negócio (lucro/prejuízo),
pode se fazer substituir por terceiros de sua confiança, sem veto arbitrário do contratante,
negocia livremente preço, prazos e forma de execução,
não está sujeito a controle típico de jornada e poder disciplinar do tomador,
mantém carteira de clientes e não depende economicamente de um único contratante (ainda que exclusividade não seja, por si, proibida),
emite notas fiscais e recolhe tributos como pessoa jurídica, prestando o serviço por resultado, e não por inserção em estrutura hierárquica do contratante.
Há fraude quando o “CNPJ” serve apenas de fachada para uma relação que, na prática, apresenta:
subordinação (ordens diretas, poder disciplinar, metas impostas com sanções),
pessoalidade (exigência de que só aquela pessoa, e não um substituto, realize o trabalho),
habitualidade (trabalho contínuo, inserido na rotina da empresa),
onerosidade (pagamento não eventual),
alteridade (o risco econômico é do tomador, não do trabalhador).
Nesses casos, pouco importa o rótulo do contrato ou a existência de notas fiscais: a realidade se sobrepõe às formas. A pessoa jurídica “interposta” é irrelevante para fins trabalhistas.
Mesmo sem uma “Lei da Pejotização”, o ordenamento fornece critérios:
• Constituição Federal: assegura direitos mínimos aos empregados e define a competência da Justiça do Trabalho.
• CLT: art. 3º (conceito de empregado), art. 2º (empregador), art. 9º (nulidade de atos destinados a fraudar a legislação trabalhista).
• CLT pós-Reforma: art. 442-B (autônomo), que admite contratação de autônomo, inclusive com exclusividade e continuidade, desde que sem subordinação.
• Leis especiais: representação comercial (Lei 4.886/65), transportador autônomo (Lei 11.442/2007), cooperativas (Lei 5.764/71), salão-parceiro (Lei 13.352/2016), entre outras.
• Jurisprudência: a terceirização é lícita inclusive na atividade-fim, mas isso não autoriza fraudar vínculo quando presentes os elementos do emprego. Em outras palavras, terceirizar é diferente de pejotizar fraudulentamente.
Os quatro elementos clássicos do vínculo são:
• Pessoalidade: o serviço é intuitu personae; o trabalhador não pode se fazer substituir livremente.
• Habitualidade (não eventualidade): inserção na dinâmica diária do tomador, com continuidade.
• Onerosidade: contraprestação financeira habitual pelo trabalho.
• Subordinação: poder de direção do tomador (ordens, fiscalização, sanções).
Há, ainda, a alteridade: o risco do negócio pertence ao empregador. Se o tomador decide como, quando e onde o trabalho se realiza, controla ponto, aprova folgas, aplica advertências e suspensões, define metas e impõe métodos, há forte indicativo de subordinação.
• Controle de jornada por ponto, aplicativo, catraca ou planilha.
• Escala de plantões definida unilateralmente.
• Portar crachá, usar uniforme e e-mail corporativo de modo típico de empregado.
• Proibição de substitutos, necessidade de autorização para faltar, férias “concedidas” pelo tomador.
• Exclusividade acompanhada de ordens e poder disciplinar.
• Metas com sanções (descontos, advertências) e avaliação com viés hierárquico.
• “Salário” pago mensalmente com estabilidade de valores, sem risco do prestador, com benefícios transvertidos em “ajustes contratuais”.
• Terceirização lícita: há uma empresa prestadora que contrata e gerencia seus empregados. A tomadora não exerce subordinação direta sobre o trabalhador; a prestadora assume os riscos e a gestão de pessoal.
• Trabalho autônomo legítimo: o profissional dirige sua atividade, negocia termos e pode se fazer substituir. Não há controle de jornada nem poder disciplinar do contratante.
• Pejotização fraudulenta: usa-se o CNPJ da própria pessoa para ocultar subordinação. A tomadora dirige diretamente o trabalho e trata o prestador como empregado.
• Saúde: médicos, enfermeiros e fisioterapeutas “PJs” em hospitais, com plantões fixos, escalas impostas e chefia direta. Se houver subordinação e pessoalidade, há risco de reconhecimento de vínculo.
• Tecnologia da informação: desenvolvedores e designers “PJs” alocados em squads, com dailies obrigatórias, controle de disponibilidade e OKRs sob comando do tomador. A autonomia técnica não afasta subordinação organizacional.
• Comunicação e jornalismo: repórteres “PJs” com pauta diária, editor responsável, horários rígidos e exclusividade.
• Educação: professores “PJs” com grade fixa, controle de frequência e coordenação pedagógica determinando métodos e conteúdo.
• Logística: motoristas autônomos podem atuar legitimamente, mas se houver escala, roteiro imposto, controle de jornada e proibição de substitutos, há risco de vínculo.
| Regime | Quem contrata | Vínculo jurídico | Direitos típicos do trabalhador | Encargos do contratante | Principais riscos | Quando cabe |
|---|---|---|---|---|---|---|
| CLT | Empregador | Emprego | FGTS, férias + 1/3, 13º, horas extras, adicionais, aviso-prévio, seguro-desemprego | Encargos previdenciários e trabalhistas, FGTS, cumprimento da CLT | Multas por descumprimento; passivo por jornadas e adicionais | Relação com subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade |
| PJ autônomo legítimo | Tomador contrata CNPJ do prestador | Prestação de serviços civil/empresarial | Sem direitos trabalhistas típicos; preço por projeto/resultado | Pagamento conforme contrato; sem encargos trabalhistas típicos | Requalificação se houver subordinação; autuações | Serviços especializados com autonomia real, risco do prestador e possibilidade de substituição |
| Terceirização | Tomador contrata empresa prestadora | Contrato entre empresas; empregados da prestadora | Empregados da prestadora têm direitos trabalhistas | A prestadora arca com encargos; tomadora responde subsidiariamente em alguns cenários | Responsabilidade subsidiária; risco de vínculo se houver subordinação direta | Serviços contínuos lícitos, inclusive atividade-fim, com gestão pela prestadora |
| Cooperativa autêntica | Cooperados por meio da cooperativa | Relação cooperativista | Rateio de resultados; autogestão | Sem encargos trabalhistas típicos | Requalificação se for “cooperativa de fachada” | Atividades com gestão democrática e autonomia real |
| MEI | Tomador contrata MEI | Prestação de serviços simplificada | Sem direitos trabalhistas típicos | Pagamento por serviço | Requalificação se presentes requisitos do emprego; impedimentos legais para certas atividades | Serviços simples, eventuais e autônomos, respeitando limites e vedações do MEI |
Para o trabalhador: anotações na CTPS, pagamento de férias + 1/3, 13º, FGTS de todo o período (com multa de 40% em caso de dispensa sem justa causa), horas extras e adicionais devidos, aviso-prévio, liberação de seguro-desemprego quando cabível, diferenças salariais, multas dos arts. 467 e 477 da CLT, entre outras parcelas.
Para a empresa: condenações trabalhistas retroativas, recolhimentos previdenciários, possíveis autos de infração por fiscalização, risco de ações coletivas (MPT) e dano moral coletivo em casos graves, além de efeitos reputacionais e financeiros. Cláusulas contratuais que tentem “blindar” a relação não afastam a aplicação do art. 9º da CLT.
Em regra, o trabalhador tem até dois anos após o término do contrato para ajuizar a ação e pode pleitear créditos referentes aos últimos cinco anos do vínculo. Nesse cálculo, inclui-se o período de “PJ” reconhecido como emprego.
• Escalas, e-mails, mensagens com ordens diretas, políticas internas aplicadas ao “PJ”.
• Controle de ponto, relatórios de horas, aplicativos de jornada.
• Testemunhas que confirmem ordens, sanções e rotina de trabalho.
• Documentos que mostrem impedimento de substituição, exclusividade e inserção na equipe.
• Benefícios concedidos como a empregados (vale, plano de saúde, metas com punição).
• Uso de estrutura física do tomador, ferramentas e sistemas sob supervisão.
Diagnóstico: identificar sinais de subordinação e reunir provas.
Tentativa de composição: às vezes, é possível regularizar a relação para CLT com reconhecimento de tempo anterior.
Ação trabalhista: pedir reconhecimento de vínculo, retificação de CTPS e pagamento de verbas.
Pedidos acessórios: horas extras, adicionais, FGTS, multas e reflexos.
Assistência jurídica: a discussão é técnica; uma petição bem estruturada valoriza provas e relatos coerentes.
Cautelas: guardar comunicações, organizar documentos e cronologia dos fatos.
Mapeamento: inventariar todos os PJs, funções, rotinas e níveis de controle.
Matriz de risco: classificar atividades por grau de subordinação e pessoalidade.
Reconfiguração: converter relações de alto risco para CLT; onde fizer sentido, migrar para terceirização lícita (com prestadora idônea) ou contrato civil com autonomia real.
Contratos: cláusulas de autonomia, possibilidade de substituição, remuneração por resultado e ausência de controle de jornada.
Operação coerente: não basta o papel. Treinar líderes para não exercer poder disciplinar sobre PJs; evitar benefícios típicos de empregados e rotinas de RH aplicadas a PJs.
Compliance trabalhista: auditorias periódicas, due diligence em M&A e registros fidedignos em eSocial; acompanhar fiscalizações.
• Representação comercial: autônomo que intermedeia negócios, sem subordinação e com comissões, seguindo a legislação específica.
• Parcerias em salões de beleza: modelo lei-específica, desde que observada a autonomia do profissional.
• Sociedades entre profissionais liberais: dois ou mais profissionais se associam e vendem serviços a diversos clientes, com risco compartilhado.
• Transportador autônomo: regras próprias, com ênfase na autonomia e responsabilidade do transportador.
• Consultoria por projeto: escopo, entregáveis e prazos definidos, com liberdade técnica e gerencial do consultor.
• Declaração expressa de autonomia e ausência de subordinação.
• Previsão de substituição por terceiros de confiança do prestador.
• Remuneração por tarefa/projeto/resultado, não por jornada.
• Responsabilidade do prestador pelos tributos e obrigações de sua empresa.
• Ausência de benefícios típicos de empregado.
• Liberdade de organização do tempo e dos meios, respeitados prazos.
Essas cláusulas devem refletir a realidade: se o dia a dia for de subordinação, o rótulo contratual não impede a requalificação.
Mesmo admitida terceirização ampla, inclusive na atividade-fim, permanece proibido transformar empregados em “PJs” para continuar exercendo as mesmas funções sob mando direto do tomador. Terceirização supõe empresa prestadora real, com gestão própria de pessoal; pejotização fraudulenta é o uso do CNPJ do próprio trabalhador para driblar direitos.
• Previdência: na pejotização fraudulenta reconhecida como emprego, ajustam-se contribuições devidas; períodos podem contar para fins de benefícios.
• Fiscal: ajustes de IRPJ/CSLL/PIS/COFINS podem surgir para o prestador, e ônus de contribuições e multa para o tomador, conforme o caso.
• eSocial: inconsistências entre eventos de pagamento e ausência de vínculo podem acionar fiscalização.
Para o trabalhador:
• Foco na subordinação e pessoalidade; descreva rotinas, ordens e sanções.
• Testemunhas da equipe e documentos que mostrem inserção na estrutura.
• Pedidos bem delimitados (vínculo, período, função, salário, jornada, verbas e reflexos).
• Cuidado com a narrativa: coerência temporal e material.
Para a empresa:
• Demonstrar autonomia real do prestador (substituição, preço por projeto, ausência de controle de jornada).
• Provar pluralidade de clientes e não exclusividade na prática (se aplicável).
• Evitar contradições nos documentos internos (organogramas, escalas, e-mails).
• Apresentar contratos e evidências de execução autônoma compatíveis com a operação.
• Médico plantonista “PJ” com escalas fixas impostas, chefe imediato, sanções e impossibilidade de substituição: forte probabilidade de vínculo.
• Desenvolvedor sênior “PJ” que vende projeto fechado, define a própria equipe, subcontrata, organiza prazos e não segue jornada do tomador: cenário com maior chance de se manter como prestação autônoma.
• Professor “PJ” com grade semanal fixa, coordenação pedagógica determinando conteúdo e avaliações, presença obrigatória em reuniões internas: sinais de vínculo.
• Representante comercial com carteira própria, liberdade de agenda e remuneração totalmente comissionada, sem ordens diretas de jornada: tendência a reconhecer autonomia.
• O prestador pode enviar substituto?
• Há controle de ponto ou meta com sanções?
• Quem escolhe métodos e meios de execução?
• O prestador tem outros clientes e estrutura própria?
• Existem benefícios típicos de empregados?
• A remuneração é por resultado/projeto ou por mês/jornada?
• O prestador suporta risco econômico?
• A comunicação reflete parceria entre empresas ou hierarquia de empregado?
Quanto mais respostas apontarem para subordinação e pessoalidade, maior o risco de pejotização fraudulenta.
Pejotização é sempre ilegal?
Não. Contratar pessoa jurídica é válido quando há autonomia real, sem subordinação. Torna-se ilícito quando o CNPJ mascara um vínculo de emprego.
Exclusividade por si só gera vínculo?
Não necessariamente. A lei admite contratação de autônomo inclusive com exclusividade, desde que ausente subordinação. Porém, exclusividade somada a ordens, controle de jornada e pessoalidade reforça o risco de vínculo.
Sou MEI e trabalho todo dia na empresa do tomador. Isso é emprego?
Depende dos fatos. Se você segue ordens, tem horário, não pode se fazer substituir e está inserido na estrutura, há fortes indícios de vínculo, ainda que emita notas como MEI.
Assinei contrato dizendo que não há vínculo. Perco o direito?
Não. Cláusulas e rótulos não prevalecem sobre a realidade. Se os requisitos do emprego existirem, a Justiça pode reconhecer o vínculo e condenar ao pagamento das verbas devidas.
Quais direitos posso reclamar se a Justiça reconhecer o vínculo?
Férias + 1/3, 13º salário, FGTS (com multa de 40% na dispensa sem justa causa), horas extras e adicionais devidos, aviso-prévio, registro em carteira e demais parcelas compatíveis com a função e jornada reconhecidas.
Qual o prazo para entrar com a ação?
Em regra, até dois anos após o término da relação; e, dentro da ação, alcançam-se os últimos cinco anos de créditos.
Como provar a subordinação?
Escalas, e-mails e mensagens com ordens, controle de jornada, testemunhas, políticas internas aplicadas a você, impedimento de substituição, reuniões obrigatórias e sanções.
A empresa pode regularizar sem processo?
Sim. É possível migrar para CLT ou terceirização lícita, ajustando contratos e, quando cabível, reconhecendo tempo anterior. Recomenda-se auditoria jurídica para reduzir riscos.
Terceirizar atividade-fim autoriza pejotizar?
Não. Terceirização lícita é contratação de outra empresa que gere seus empregados. Pejotização fraudulenta é usar o CNPJ do próprio trabalhador para manter subordinação direta.
Recebi benefícios como plano de saúde e vale. Isso prova vínculo?
É um indício, principalmente se tais benefícios forem idênticos aos de empregados. Mas a decisão depende do conjunto de provas, com destaque para subordinação e pessoalidade.
Houve pagamento por metas e resultado. Ainda assim pode haver vínculo?
Sim. Pagamento por resultado não afasta, por si só, a subordinação. O que importa é quem dirige a atividade e como a relação se organiza.
Se a empresa fechar, ainda posso cobrar?
Sim. Há possibilidades de responsabilização de sucessores, grupos econômicos e, em certos casos, dos sócios, conforme a legislação e a prova do caso concreto.
Perdi a ação. Vou pagar honorários?
O regime de honorários sucumbenciais na Justiça do Trabalho existe, com regras específicas. A orientação técnica é imprescindível para avaliar riscos.
Sou empresa que usa PJs. Qual o primeiro passo para reduzir riscos?
Mapear funções, medir subordinação e pessoalidade, revisar contratos e rotinas e, quando necessário, migrar relações para CLT ou terceirização real. Treinar lideranças é crucial.
Pejotização não é um “mal” em si: é apenas a contratação de serviços por CNPJ. O problema surge quando o CNPJ serve para encobrir uma relação de emprego típica. O direito do trabalho olha para os fatos — subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade —, não para o rótulo contratual. Para trabalhadores, a orientação é reunir provas e buscar o reconhecimento de seus direitos quando a autonomia é meramente formal. Para empresas, o caminho é alinhar contrato e prática: onde houver subordinação e pessoalidade, o regime adequado é a CLT; onde houver autonomia real, é possível manter contratos civis, terceirizações lícitas ou outros arranjos previstos em lei. Auditoria, prevenção e coerência operacional reduzem drasticamente litígios e passivos, protegendo pessoas e negócios.
11 de outubro de 2025
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